a noite se aconchega
nas dobras do lençol
espreguiça e se encolhe
sobre o cansaço do dia
suspira e adormece
a noite se aconchega
nas dobras do lençol
espreguiça e se encolhe
sobre o cansaço do dia
suspira e adormece
sob pressão
aceito a proposta
assino as três vias
e me rasgo inteira
não tenho respostas
só questões que se emaranham
entre linhas retratos recortes
a espera de mãos
que as entrelacem
que deem a elas algum sentido
.
sempre pensei que fiar
fosse responsabilidade dos velhos
mas eles se foram
.
(do livro fronteiras, Sette Letras)
recolho os pratos
os versos
as armas
qualquer atitude agora
seria um furacão
máquina de torcer sentidos
faca afiada
moedor de sonhos
.
silencio
o amor que ainda resta
o ódio que brota
a vontade de virar a mesa
e fujo para uma praia distante
onde possa uivar como animal ferido
.
engulo os fatos
embrulho o estômago
e os retalhos daquilo que seria muito
saio sem estardalhaço
sem ilusões
avanço pelos dias
até ganhar distância
você desce as escadas, eu conto os degraus
em algum momento visitamos teus/meus porões
queria te encontrar no caminho e perguntar
se são movediços os teus medos
se no fim dos degraus é o precipício
queria conversar sobre abismos
mas não nos vemos
o que não surpreende
há tanto já não damos as mãos
mesmo nos velhos retratos, repare
parecíamos felizes, mas era só fotografia
mesmo sorrindo cada um olhava
para um horizonte diferente
opostos campos e armadilhas
.
Não convém se aproximar
prolongar esse momento
ou me dar seu telefone
é tarde e nem sei seu nome
você sabia que há muitos anos
isso era um charque?
ninguém por aqui passava
e veja só
agora estamos a caminhar
passos tranquilos e firmes
nessa calçada de pedras
.
logo a frente tem um ponto de taxi
você pega um carro
sigo a pé
e jamais saberemos se teria dado certo
se teríamos feito alguma viagem
arriscado mais uma vez
melhor assim
.
piso nas pedras sem pressa
e penso que um dia
tudo isso já foi
um charque um pântano
muito antes
homens pré-históricos
enfrentaram seres imensos
há milhões e milhões de anos
e ainda antes
nada
Os dias se enfileiram
Como soldados sem graça
E sem sentido
Nas paradas da independência
Ela mesma algo controversa
.
Tentar espairecer
Tomar um remédio
Uma água de coco
Sossegar num lugar ao sol
E esperar que passe
.
Acordar com alguma dor
E nem saber exatamente onde
Ou o que anuncia
Para além da velhice
Da noite mal dormida
Das passadas presentes e futuras
Horas enfrentando
A luz fria do computador
.
Um avião passou rasante
cheguei a imaginar
um homem de óculos e uma jovem bonita
olhando ávidos ou amedrontados pela janela
.
partir é sempre um susto
.
em seguida uma moto
e seu motorista encapuzado
motor sem escapamento
jaqueta de couro em alta velocidade
ensurdeceram os pássaros já tão raros
.
segui pela beira da praia
tirei os sapatos para sentir melhor
a areia e as águas macias
pés descalços são um jeito bom de chorar
cantarolei … baby, baby, eu sei que é assim…
.
9 de novembro de 2022 – em homenagem a Gal Costa